sexta-feira, 2 de outubro de 2009

ECO SOBRE O ALUPEC

Num extenso artigo publicado no Liberal on-line, intitulado de “A INCONSTITUCIONALIDADE DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO ALUPEC — O IUS ABUTENDI DO CABO-VERDIANO”, o Dr. Vergílio Brandão expõem algumas “barbaridades” e “ilegalidades” que o Ministro da Cultura, Dr. Manuel Veiga e o Governo, vêm cometendo no processo de implementação, institucionalização e legalização do alfabeto ALUPEC, como forma de escrever o cabo-verdiano (crioulo). Para além da questão legal, parece de todo importante dar especial atenção à forma como se tem, com alguma ligeireza, traduzido textos tão importantes como a “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, não dando a importância devida ao conceito filosófico que está por trás desse importante texto, como aliás refere o colunista no mesmo texto. Essa parece ser uma questão sensível neste processo de implementação do crioulo como língua oficial, uma vez que, procedendo dessa forma, se irá transmitir um sentido desvirtuado dos textos traduzidos para o crioulo, acabando por ter um efeito contrário ao pretendido. Ou seja, o de facilitar a compreensão dos textos traduzidos do português para o crioulo, ou de outras línguas estrangeiras para a nossa língua mãe.
Deixo aqui um pequeno estrato desse texto:

[…] É grave o Governo proceder com tanta ligeireza no momento de legislar! E legislar em matéria tão importante como um direito e um princípio fundamental da Nação e do Estado de Cabo Verde. O facto de uma entidade privada ter recorrido ao ALUPEC para traduzir a Bíblia (que não é um facto acabado, mas um processo) é importante, mas não é critério científico para se avaliar o instrumento em si. E é grave num linguista com formação religiosa que sabe, deve saber, que a Bíblia sempre foi traduzida para todas as línguas e dialectos conhecidos como instrumento de cultura e missão evangélica, adaptando o texto às realidades.
E é consabido o exemplo escolástico de Isaías I.18: «[…] ainda que os Vossos pecados sejam como a escarlate, eles se tornarão brancos como a neve […]» Em línguas sem estrutura gramatical e que palavras, como a de «neve» no interior de África, não existia e os missionários conseguiram traduzir a Bíblia para estas línguas recorrendo-se a analogia. Aliás, basta ler-se os textos existentes da tradução de Os Lusíadas do Cónego Costa Teixeira — nomeadamente as transcritas por Leite de Vasconcelos, no texto Dialectos Crioulos Portugueses de África, e publicado em 1898 (Leite de Vasconcelos, «Dialectos Crioulos Portugueses de África», in Revista Lusitana, Volume IV, Fascículo 4, Lisboa, 1898, pp. 241.261) — para se perceber as dificuldades da tradução de um texto literário do português clássico para o cabo-verdiano (ao caso foi usado, decorria o ano de 1898 quando este texto foi editado, o cabo-verdiano ou crioulo de Santo Antão que o autor considera, assim como os demais crioulos cabo-verdianos, com origens no Sul de Portugal):
Tude aquês arma e quês home falláde,
Que lá de Gilbôa ond’ sol ta cambá,
Pa mar nunca dánts p’ôtes navêgáde,
Tê lá na cabe de munde ês chegá,
Na p’rigue má guerra desaf´nade
Més que tud’ força d’êss’ munde tá d’xá
E na mêi de gente longe ês fazê
Um nove naçom q’ês tant´ingrandcê;
No texto camoniano (Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, I.1), se lê:
As armas e os barões assinalados,
Que da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;
Mais, eu estou curioso para saber de que textos se está a traduzir a Bíblia para o cabo-verdiano no modelo ALUPEC… mas esta é, de todo, outra questão e contas de um outro rosário. É que ou falamos de ciência a sério, ou então somos meros copistas de traduções de traduções; e espero que não seja e este o caso, pois uma coisa é traduzir a Bíblia a partir dos seus textos originais, i.e., o Aramaico, o Hebraico e Grego antigo, e outra coisa é usar a Vulgata latina, a King James ou a João Ferreira de Almeida como referências, textos estes com erros de tradução (com consequências gravosas na hermenêutica bíblica) que passarão, se servirem de matriz, para o cabo-verdiano — e não importa se é o ALUPEC ou qualquer outro modelo de Alfabeto.
Do mesmo modo que o texto que a Comissão Nacional dos Direitos Humanos e Cidadania fez da Declaração Universal dos Direitos Humanos com o ALUPEC como instrumento não é relevante pois é um documento com trinta artigos, mais de 360 traduções e em quase todas as línguas e dialectos conhecidos… além de que há anos que andava a circular na internet estamos a falar, tão-somente dos dois textos mais traduzidos do Mundo: a DUDH e a Bíblia e que invocá-los como razão de ciência é, no mínimo, desacredita a ciência. De notar-se, ainda, que a tradução da Declaração está pejada de erros, como é o caso do Artº.1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 que enuncia:
«Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.»
A sua tradução para o cabo-verdiano no modelo ALUPEC foi:
«Tudu gentis ta nasi libri y igual ku se dignidadi y ku ses diretu. Es nasi ku intelijensia y ku konsiensia y es debe ten pa kunpanheru spritu di morabeza.»
Ora, quem fez esta tradução lavra em erros conceptuais graves (e dá para perceber que não leu os trabalhos preparatórios da Comissão dos Direitos Humanos da ONU antes de lançar-se nesta aventura; que se louva a iniciativa, mas que se critica o voluntarismo e a falta de rigor científico), como, v.g., (i) confundir «razão» com «intelijensia»; (ii) subjectivar a dignidade e os direitos, ignorando que a força destes conceitos está na sua dimensão objectiva; (iii) degradar o conceito de «outro» que não é, de todo, análogo ao de «kunpanheru», pelo contrário! até são diacrónicos no plano lógico. E se não se for «kunpanheru», mas sim o «outro», o estrangeiro, o judeu, o «mandjaku»? Onde fica(rá) o dever na ausência do bom samaritano? O «outro» permanece para além do «kunpanheru», e o que esta tradução da DUDH faz é desvirtuar o sentido e a natureza do sentido do «outro» — e, note-se, este conceito é um conceito filosófico fundamental, estruturante para o humanismo, e não uma palavra inócua, assim como a de companheiro não é, no cabo-verdiano (mesmo com fórceps), sinónimo de outrem… Enfim, amadorismos.
A redacção do artigo Artº.1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que emergiu depois de uma longa e profunda discussão ética e filosófica no seio da Comissão dos Direitos Humanos da ONU, tem as suas origens no draft de John Peters Humphrey e depois revista por René Cassin, sendo certo que tem origens mais remotas, nomeadamente no pensamento de Francisco de Vitória e na sua defesa de uma dignidade humana e de direitos naturais universais com génese na obra de Ulpiano e nos jurisconsultos severianos: «[…] o que é sempre justo e bom, designa-se por Direito natural» (Digesto, I.1). Daí que a universalidade da dignidade humana e os direitos humanos tenham uma dimensão objectiva (opondo-se ao direito subjectivo, ou direito do sujeito, o direito de cada um… ou «[…] se dignidadi y ku ses diretu») e seja aceite por todos os povos do Mundo. Em Cabo Verde, ao que parece, alguém teve a perspectiva peregrina de subverter o sentido e a natureza do maior ganho civilizacional do século XX (e o que me preocupa é que tenha tido uma dimensão instrumental para esta questão da aprovação do ALUPEC — pelo menos assim parece).
E será que, neste aspecto, preciso de continuar? Sim, para dizer que, além destas falhas, anota-se ainda (iv) que fraternidade [que, em linguagem teológica, tem também o significado de Amor e, na tradição cultural e jurídica europeia da cidadania emergente da Revolução francesa e a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, está ao lado da liberdade e da igualdade] não é a mesma coisa que «morabeza», ainda que nos soe bem aos ouvidos! Os conceitos de Liberté, Egalité, Fraternité têm foros históricos e conceptuais próprios e são os fundamentos imediatos da República moderna. E esta fraternidade é, como um ex-estudante de teologia como o Ministro da Cultura sabe(rá), é um dos pilares da «civilização do Amor»… e que é mais, muito mais do que a «morabeza» crioula. Neste aspecto, seria útil a leitura de algumas Constituições pastorias, nomeadamente a Rerum Novarum e a Gaudium et Spes…
Assim como a expressão «gentis» não é feliz; direi até que é muito infeliz pois a noção de «homem» e «pessoa» foram expressamente afastado da redacção final quer pelos problema sociais e culturais ligados a ideia de «homem» que pelos problemas conceptuais inerentes à de «pessoa». E é por isso que ficou «Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos.» fica claro que o cabo-verdiano continua e continuará tributário do português no que diz respeito a compreensão de dados conceitos, e que cabo-verdianizar conceitos não quer dizer, de todo, popularizá-los. Falamos de ciência, é posto.
Isto para dizer que se o Governo quis dar uma sustentação científica ao Decreto-Lei nº 8/2009 de 16 de Março, foi infeliz na escolha dos exemplo escolhidos (na falta de mais…), pois tais não correspondem à realidade. A tradução da Declaração Universal dos Direitos Humanos é um desastre no plano da ciência do Direito (e é disso que falamos), e uma confusão acabada no plano da transposição de conceitos filosóficos para o cabo-verdiano no modelo do ALUPEC. Prenúncio do futuro? Parece que sim, mas Espero que não. A verdade é que se num único artigo de um texto tão pequeno como este se encontram estes erros (não identificados pelo Governo, pejado de juristas e de linguistas… e já nem falo na dimensão estruturante que a DUDH tem na ordem jurídica cabo-verdiana), o que dizer de textos mais complexos? Tornar-se-ia impossível a tradução de Ulisses de James Joyce, de Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll ou qualquer das obras de Jurgen Habermas (e os linguistas e amantes da literatura sabem das dificuldades linguísticas e conceptuais, no caso de Habermas, que estes autores, entre outros, colocam).
Mas se isso não fosse bastante, o Governo fundamenta-se ainda num facto, «dado relevante», que não é verdadeiro, que não tem realidade e o mínimo de correspondência com a verdade: «dado relevante é a tradução, nesse modelo de alfabeto, de grandes clássicos da literatura portuguesa pelo poeta José Luís Tavares» (lex dixit). Este facto não é, reitero, verdade! Isto é brincar ao «fazer leis», sem racionalidade e realidade de fundamentos.
José Luís Tavares (o poeta escreve o seu nome de poeta com Z — este facto é compreensível pois, infelizmente para o Ministro da Cultura, não deve ler a poesia do poeta de Txom Bom) nunca traduziu nenhum clássico português para o ALUPEC! Está, sim, ó Governo da minha terra! (sim, M.I. Ministro da Cultura), a traduzir (traduzindo, o gerúndio clarifica?) os Sonetos de Luís Vaz de Camões para o cabo-verdiano e usando o ALUPEC de que é cultor. Ah, já agora: gostaria de ver o que o poeta dirá quando e se o fizer, pedir ao Ministério da Cultura para financiar a publicação dos Sonetos de Camões que está o traduzir e o Ministério dizer que não… que não tem verba. Cá estarei para ver, e ouvir.
É uma infelicidade, invocar-se isso como fundamentação numa lei — sendo o facto não verdadeiro (não uso a palavra mentir porque respeito sobremaneira as instituições do meu país para usar palavra tão lapidar). Verter uma inverdade numa lei, para poder fundamentá-la, é de uma gravidade tal — proceder a omissões, ou cometer erros técnicos ou invocar-se ciência frouxa até que se engole… a custo! — que só o povo a quem a lei se dirige pode julgar com ciência bastante. E este povo, de que faço parte e me orgulho de pertencer, merece uma explicação do Governo, em particular do Ministério da Cultura.
Posto isto, quem é que irá perguntar (i) ao Primeiro Ministro José Maria Neves; (ii) a Ministra da Educação, Vera Duarte; (iii) e ao Ministro da Cultura, Manuel Veiga (os dois primeiros com ambições poéticas e o segundo… Ministro da Cultura!), que assinaram o Decreto-Lei nº. 8/2009, de 16 de Março em Conselho de Ministros, quais são «os grandes clássicos da literatura portuguesa» que José Luís Tavares traduziu para o ALUPEC? Têm a palavra os Senhores jornalistas (o povo, eu… por exemplo, gostaria de saber se estamos 1) perante incúria, 2) incompetência funcional, 3) desespero de fundamentação ou 4) falta de cultura no Conselho de Ministros e na Presidência da República). Como não sei, gostaria de saber. Não sei quem mais quer saber, mas eu quero saber! Afinal, como é consabido e nunca o escondi de ninguém, dei o meu voto de confiança a este Primeiro Ministro, José Maria Neves, ao votar nele para governar o país por mais uma legislatura; o Presidente da República, como também se sabe, não mereceu o meu voto pois era meu entendimento que Carlos Veiga seria e faria melhor do que o Pedro Pires do primeiro mandato — e hoje estou cada vez mais convencido de que fiz a opção correcta ao não votar nele. É um vigia que não vigia, adormecido que está no Palácio presidencial (a promulgação do Decreto-Lei nº. 8/2009, de 16 de Março é paradigmático).
Isto de meter o poeta no seio de uma inverdade, no mínimo, deveria dar lugar a um pedido formal de desculpas do Governo de Cabo Verde ao Poeta José Luís Tavares, a um esclarecimento ao Povo de Cabo Verde e a demissão do Ministro da Cultura (colocar o lugar a disposição do Primeiro Ministro, por razões pessoais, seria simpático e uma prova de que ainda respeita o povo de Cabo Verde — ou vai deixar a culpa para o chefe do Governo?).
O que é grave é que se atribui ao poeta de Txom Bom obra que não fez, e nem precisa ou precisará destes favores envenenados, e se omite que os «grandes clássicos» portugueses traduzidos para o cabo-verdiano não são nem do José Luiz Tavares nem de nenhum outro cultor do ALUPEC! Que eu tenha notícia — mas que não é valorizado devidamente —, Os Lusíadas de Luís Vaz de Camões foi traduzido pelo Cónego Gomes Teixeira e o mítico poema Endechas à Barbara Escrava do mesmo Camões também vertido para o cabo-verdiano por Eugénio Tavares e que, como sabemos, não foi em modelo ALUPEC (e o Ministro da Cultura, enquanto académico, já orientou teses de mestrado em português e sobre o crioulo — que se Alupecou com a sua eucaliptica bênção — e conhecerá estas traduções como nenhum outro cabo-verdiano, e talvez por isso as não refere). A memória selectiva tem destas coisas: só são lembráveis as coisas e as situações que interessam para fundamentar o que se quer — o que eu até entendo, mas não posso aceitar como legítimo e aceitável neste contexto […]

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