domingo, 27 de janeiro de 2008

QUEM PAGOU A CONTA? A CIA NA GERRA FRIA DA CULTURA

São Paulo, sábado, 26 de janeiro de 2008

Cultura &CIA

"Quem Pagou a Conta?", da jornalista inglesa Frances Stonor Saunders, revela que nomes como Pollock e Hannah Arendt acabaram se beneficiando da "guerra fria cultural" travada pela CIA com dólares e sofisticação

CIA fez campanha contra Nobel para Pablo Neruda

Segundo a autora, área mais "frutífera" para a agência foi a de revistas e livros Expressionismo abstrato, de artistas como Jackson Pollock, foi a arte oficial da Guerra Fria cultural promovida pela agência



DA REPORTAGEM LOCAL

Leia abaixo a continuação da entrevista com a jornalista Frances Stonor Saunders.

EDUARDO SIMÕES

DA REPORTAGEM LOCAL

Na luta por corações e mentes durante os anos de Guerra Fria, a Agência Central de Inteligência dos EUA, a CIA, teve um braço armado de dólares para promover o "american way" e cooptar intelectuais e artistas em sua campanha anticomunista. A ação foi investigada ao longo de cinco anos pela jornalista inglesa Frances Stonor Saunders e resultou no livro "Quem Pagou as Contas? A CIA na Guerra Fria da Cultura", originalmente lançado em 1999 pela Granta, e que acaba de chegar às livrarias do Brasil. Saunders conta que o expressionismo abstrato, de artistas como Jackson Pollock, foi a "arte oficial" do período. A jornalista evita, porém, destacar um caso de interferência mais perturbadora: "O envolvimento da CIA na cultura foi uniformemente pernicioso e errado".

Leia a seguir trechos da entrevista que Saunders deu, por e-mail, à Folha.

FOLHA - A senhora encontrou muitos obstáculos oficiais para a sua pesquisa? FRANCES STONOR SAUNDERS - Meu pedido por documentação na CIA não obteve êxito. O Ato de Liberdade de Informação tem muito pouco efeito quando se trata de extrair material da CIA. Mas outras fontes de arquivo são muito ricas em termos de material da agência, principalmente porque ela trabalhou bem de perto com o setor privado para promover seus programas. Grandes instituições filantrópicas -a Fundação Ford, por exemplo- trabalharam com a CIA fornecendo dutos para seus dólares. E havia muitas fundações testas-de-ferro que, para manter as aparências, mantiveram suas contas e registros. Uma vez que era sabido quais foram criadas pela CIA, foi relativamente fácil inspecionar seus documentos.

FOLHA - Quais eram os objetivos da CIA?

SAUNDERS - A agência estava tentando promover uma idéia: a "pax" americana era a coisa certa. A cultura, a arte e as idéias americanas eram os lugares onde as liberdades eram expressadas e protegidas. Tudo que tinha a ver com o comunismo era mau, e o antiamericanismo era uma traição dos princípios fundamentais que sustentavam a liberdade de expressão.

FOLHA - O que os "agentes culturais" da CIA fizeram para disfarçar suas verdadeiras intenções?

SAUNDERS - A CIA disfarçou seu investimento em cultura escondendo-se atrás de uma série de frentes de atuação, sendo a mais bem-sucedida delas o Congress for Cultural Freedom [congresso pela liberdade cultural]. Para tanto, ela confiou a um círculo de intelectuais a proteção de seu segredo e o cultivo de seus investimentos. Mas houve alguns descuidos incrivelmente estúpidos: a operação financeira deixou um rastro de documentos, como fios pendurados na parte anterior de um rádio, e, uma vez que as suspeitas vieram à tona, foi fácil trilhar o caminho do dinheiro que levava à CIA. No meio da década de 60, muita gente sabia de onde o dinheiro vinha. Mas muitas pessoas que estavam recebendo diárias da agência não queriam reconhecer o fato e enfiaram suas cabeças na areia. Elas sabiam, mas não queriam saber. Outras certamente sabiam em detalhes o que estava acontecendo e estavam envolvidas no engano a seus colegas e a seu público. E o legado desse acordo notório ainda está, acredito eu, sendo experimentado.

FOLHA - Entre todas as áreas da cultura, qual a senhora acha que a CIA investiu mais e por quê?

SAUNDERS - O programa de Guerra Fria cultural era muito abrangente, mas era em grande parte sofisticado e erudito. Ele não investiu muita energia ou dinheiro em cultura popular, mas se concentrou em atividades intelectuais -periódicos, seminários, concertos, exposições de arte- porque ele queria conquistar a elite intelectual e aproximá-la da idéia de que o futuro da liberdade estava indissociavelmente ligado aos valores americanos, ao poder americano.

FOLHA - Quais áreas da cultura foram mais "frutíferas" para a CIA?

SAUNDERS - Provavelmente, o melhor retorno para a agência foram as áreas dos periódicos e livros. A CIA tinha um programa de publicações e revistas bem abrangente e tinha um bom orçamento -com o qual foi possível atrair algumas das melhores mentes da era pós-guerra e dar a essas pessoas a plataforma para transmitir suas idéias. Não é necessário dizer que tais idéias tinham de dizer, em menor ou maior grau, simpáticas aos pagadores da CIA. Pablo Neruda ou Sartre não eram bem-vindos como participantes.

FOLHA - Alguns daqueles artistas não teriam hoje a mesma importância sem a influência da CIA?

SAUNDERS - É possível questionar a reputação de alguns escritores e artistas à luz do que sabemos sobre o envolvimento da CIA na Guerra Fria cultural. Por outro lado, a agência fez de tudo para prejudicar Pablo Neruda, não apenas por sua visão política mas também como escritor. Ela, em segredo, fez campanha contra a premiação dele com o Nobel. Mas muitos escritores ou pensadores menores de repente se viram tirando proveito de passagens de primeira classe para viajar pelo mundo e fazer palestras tendo uma plataforma fornecida pelo braço secreto do governo americano. Quantos deles estavam destinados a parar nos porões dos sebos de livros?

No meu capítulo sobre o expressionismo abstrato, eu não questiono o valor estético do movimento ou o impacto que ele teve, e continua a ter, na história da arte. Mas mostro como a CIA estava envolvida num cartel cujo principal objetivo era asseverar os méritos do expressionismo abstrato como propaganda da liberdade americana, e isso foi feito em detrimento de outros tipos de arte. O movimento se tornou a arte oficial da Guerra Fria americana, o tipo de arte que os diretores da CIA colocavam na parede de suas salas. Acho importante saber como isso ocorreu.

FOLHA - Pode-se comparar esta política ao que foi feito durante o nazismo e na União Soviética?

SAUNDERS - O que a CIA fez foi infinitamente mais sofisticado do que fizeram os nazistas ou os soviéticos. Não se tratava de armar estratégias para forçar pessoas a seguir a linha oficial. O que CIA desenvolveu foi uma forma muito sutil de propaganda: o tipo em que as pessoas envolvidas em sua produção, e aquelas envolvidas em seu consumo, sequer sabiam o que é propaganda. Então, nada de agrupamentos de massa, pinturas realistas mostrando trabalhadores brandindo suas ferramentas contra a opressão dos capitalistas.

Pelo contrário, você mostra às pessoas o expressionismo abstrato, que aparentemente não significa nada, e você diz "olhe como somos livres, tão livres que produzimos arte que significa tudo e nada ao mesmo tempo". E o que você obtém é um dispositivo bem inteligente para encorajar a idéia de que a América é a campeã da liberdade, apesar do que esteja acontecendo em seu nome ou sob seus auspícios (o estabelecimento de ditaduras na América Latina, a interferência com esquadrões da morte, tortura etc.).

Crítica/"Quem Pagou a Conta? A CIA na Guerra Fria da Cultura"

Com apetite por escândalo e detalhe, livro tem efeito de "lista negra" ao contrário

MARCELO COELHO

COLUNISTA DA FOLHA

O "perfeito idiota latino-americano", e muitos latino-americanos não tão idiotas assim, acostumaram-se a ver agentes da CIA ajudando a derrubar governos de esquerda em todas as partes do mundo e ensinando técnicas de tortura para os regimes ditatoriais que os sucederam.

Comparativamente, a realização de congressos de escritores e o apoio a revistas de intelectuais foram algumas das atividades menos condenáveis da agência de espionagem americana. É esse vasto empreendimento de propaganda cultural que Frances Stonor Saunders analisa, com enorme apetite pelo escândalo e pelo detalhe, em "Quem Pagou a Conta?"

Publicado nos Estados Unidos com o título "The Cultural Cold War", a pesquisa de Saunders ilumina duas décadas das ações secretas da CIA no "front" cultural. Estavam longe de ser toscas. Com dinheiro de sobra, proveniente de várias fundações de fachada, foi possível promover exposições de arte abstrata americana na Europa, apresentar turnês da Orquestra Filarmônica de Boston em Paris e Berlim, e criar revistas de alto padrão, como "Encounter", que tinha como um de seus editores Stephen Spender, um dos mais importantes poetas ingleses da época.

George Kennan, talvez o mais importante formulador da política externa americana no pós-guerra, explicou com alguma candura as atividades culturais da CIA: os Estados Unidos não tinham ministério da Cultura... De modo que tudo se resumia, afinal, ao que um ministério francês ou brasileiro tinha obrigação de fazer: promover a cultura de seu próprio país no estrangeiro.

Por que então toda a operação tinha de ser secreta? Um dos motivos mais curiosos para o sigilo daquelas operações é que a extrema-direita americana, cada vez mais histérica durante o macartismo, não admitiria que o governo ajudasse artistas tão modernos quanto Jackson Pollock e revistas tão "avançadas" como a "Partisan Review". Eram todos "vermelhos"; a própria CIA estava infestada deles, vociferava o senador Joseph McCarthy no auge da caça às bruxas.

Lista negra ao contrário

O livro de Saunders tem, hoje em dia, o efeito de uma "lista negra" ao contrário. Quem foi financiado pela CIA? Quem sabia que estava sendo financiado? Os nomes, a começar pelo de Spender, são muitos, e na sua maioria pouco conhecidos no Brasil. Pouca gente resistia, entretanto, a mordomias, bons pagamentos e viagens grátis: Mary McCarthy, Robert Lowell, Hannah Arendt, William Styron são citados entre os que, "sabendo ou não", participaram no mínimo de um ou outro convescote.

O excesso de nomes, a falta de um organograma de toda a operação e certo espírito persecutório prejudicam a excelente pesquisa de Saunders. Não é justo criticar um livro pelo que não se propunha a ser, mas dois pontos devem ser levantados.
Um levantamento de toda a máquina soviética de auxílio material e de prestígio aos intelectuais europeus da época tornaria sem dúvida mais equilibrada a narrativa de Saunders. Além disso, ao escolher como principais personagens os homens da CIA e seus financiadores, o livro dá menos atenção ao que haveria de mais interessante a ser contado: qual a atitude, os dilemas, os compromissos dos financiados? Em que isso afetou seus escritos, pinturas e composições? A feroz objetividade investigativa de Frances Saunders, admirável no seu gênero, talvez não seja a qualidade mais indicada para responder a essa pergunta.


QUEM PAGOU A CONTA? A CIA NA GUERRA FRIA DA CULTURA

Autora: Frances Stonor Saunders

Tradução: Vera Ribeiro

Editora: Record

Quanto: R$ 68 (560 págs.)

Avaliação: bom

Ta Sumara Tempo

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Praia, Ilha de Santiago, Cape Verde

Jasmine Keith Jarret

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